Ratos e urubus larguem a minha fantasia

Por Cadernos de Rishikesh - Nei Silva em 22/05/2021
Ratos e urubus larguem a minha fantasia

Era o fevereiro de 1989 e eu nada esperava além de mais um belo carnaval da Beija-flor de Nilópolis. A comissão de frente entrou de forma impecável, deslumbrante. Os primeiros carros alegóricos transpiravam ouro, prata, luxo. Supostos cordões de diamantes e pedras preciosas sacolejavam sobre os seios de lindas mulheres; deusas seminuas que dançavam freneticamente. Ainda inebriado pela magia do luxuoso espetáculo vi emergir na avenida figuras estranhas e incompatíveis com o cenário: mendigos, aleijados, leprosos; trapos humanos com suas roupas imundas, rasgadas. A câmera da tevê mergulhava em suas bocas escuras expondo dentes ausentes e negros… com a lerdeza que me é peculiar tardei em entender a jogada de mestre, que somente a genialidade de um carnavalesco do porte de Joaozinho Trinta fora capaz: trazer para a avenida os opostos, o luxo e o lixo. O enredo de Joãozinho Trinta chamava-se “Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia!” e mostrava-nos como o Luxo e o Lixo andam juntos, mostrou como podemos ser enganados pelo que os olhos veem, como uma primeira impressão pode estar errada, como conceitos pré-arraigados podem nos iludir, mostrou sobretudo como é possível ver o lixo no lixo; o luxo no luxo; o lixo no luxo; e o luxo no lixo, it is up to you.

A Nova Délhi que descubro não é muito diferente daquele desfile que assisti há anos atrás pois carrega facetas contraditórias de luxo e de lixo, de beleza e de feiura; de pobreza e de riqueza. Não é à toa que ao consultar amigos, em minha preparação para vir a Índia, obtive conselhos tão dispares e antagônicos. Uns odiaram, outros amaram este país; uns falaram da pobreza das pessoas, outros da beleza dos templos; uns enfatizaram a sujeira das pessoas, outros a beleza dos rostos embaixo da mesma sujeira; uns se incomodaram com a pimenta da comida, outros a incorporaram ao seu hábito alimentar. Concluo que a posição e o background do espectador interferem na avaliação do objeto avaliado, neste caso a Índia. Se com o olho focarmos somente o lixo, somente lixo veremos, e nada nesta vida é definitivamente só lixo.

Penso nisto ao deixar os muros do Ashram Aurobindo, que é modesto pela simplicidade e luxuoso se considerarmos a prática de Ioga e de meditação matutina que nos proporciona. Encaro as cinzentas ruas de Délhi em busca de descobertas apurando os olhos para buscar enxergar em suas caóticas ruas o luxo, a beleza.

Cruzo a cidade num tok tok (pequeno taxi indiano construído sobre um chassi de motocicleta) movido a combustível e a muitas buzinadas, malditas buzinadas que se sucedem, se misturam, se confundem e me incomodam...muito! A regra daqui é buzinar para virar à esquerda, buzinar para virar à direita, para seguir em frente, para avisar o carro de trás, para justificar uma freada, para repreender um pedestre, ou simplesmente para passar o tempo. Inconformado decido contá-las: são 89 num trajeto de 9 minutos.

A pé atravesso uma favela que dá acesso a um templo Sufi, sinto-me a salvo do barulho das buzinas, mais incomodado com a pobreza me cerca. Não tenho medo da travessia, não há qualquer menção de roubo ou qualquer tipo de violência, apenas a pobreza latente. Lembro-me do “luxo no lixo” e a luz negra e intensa dos olhos das crianças indianas que brincam absortas na rua me apaziguam o coração, tiro algumas fotos e mostro o que deles capturei, riem ao se verem enquadrados na telinha e seus sorrisos parecem dizer “take it easy my friend!”.

Dentro do templo outro incômodo me testa um forte cheiro de flores. Vasculhando minhas reminiscências olfativas associo o sentimento de incomodo ao fato de o cheiro do lugar lembrar o cheiro de velórios.  No templo não há velório, nem mortos, nem enterros, apenas milhares de rosas que pela tradição são deixadas em altares numa oferenda aos Deuses daqui. Resignadas, nada resta a estas flores a não ser exalar o seu cheiro por todo o ar.

Soube que, à noite estas rosas, ou o bagaço destas, é removido e com isto são produzidos essências, óleos, cremes, que posteriormente vendidos tem seu dinheiro revertido para a manutenção do Templo e para a alimentação diária e gratuita de aproximadamente 2 mil pessoas.  Sorrio ao perceber o luxo no lixo; ou a flor que lembra a morte, a flor que vira um produto de beleza, o bagaço da flor que se transforma um prato de comida para uma boca faminta.

Entro num salão, que descubro ser o coração do templo e onde as rosas são jogadas, o cheiro de rosas é muito forte, mais forte do que qualquer velório que eu tenha ido. Seguindo o protocolo silencioso me sento e junto ao grupo que lá estava. Estes silenciosos visitantes: estrangeiros, indianos, mendigos, ricos, pobres nada fazem a não ser meditar, orar, cada qual com sua técnica, cada qual com seu incomodo, cada qual com sua busca.

O ar saturado pelo odor das rosas impregna em meus pulmões a cada inspiração. Não tenho medo, quem sabe tenha no máximo medo de sentir medo (se é que isto é possível). Relembro a forte afirmação do gestor do Templo: “Aqui ninguém morre de fome! Pois sempre haverá um prato para alguém faminto!” e diante disto todo o incomodo que sentia se esvai lentamente, o forte odor torna-se imperceptível, e assim relaxo e entro em meditação junto ao grupo. Durante um intervalo que não sei precisar quanto, o tempo, o medo, o incomodo, o cheiro e o lixo deixam de existir. Nada penso, nada existe, e justamente por isto, a sensação de plenitude é máxima. Do nada o tudo surge.

Volto a mim, com a movimentação de um parceiro de meditação que se levanta. Eu, ciente de minha ignorância faço as reverências necessárias para deixar o local imitando o que a maioria faz, ajoelhando quando alguém ajoelha, reverenciando quando alguém reverencia, agradecendo quando alguém agradece. Deixo o templo impune.  

Leve de corpo e alma atravesso a avenida que margeia um rio poluído onde urubus e ratos disputam algum detrito, mantenho o controle, sei que não será esta visão que maculará o belo que vi na ação social e humanitária do Templo Sufi.

Subo no tok-tok imbuído do desejo estender o meu recente autocontrole para enfrentar as 89 buzinadas que me separam do Ashram, e espero que as 1059 que receberei de resposta dos outros veículos, sejam insuficientes para afetar o meu bom humor. Torçam por mim!

 

Comentários

  • Nenhum comentário. Seja o primeiro a comentar!

Aguarde..